Encontramo-nos à porta
O que é efectivamente o tempo? Essa passagem dos dias, das horas, dos minutos. Num dia estamos aqui e no outro já não. Temos brevemente o tempo do nosso lado. Essa coisa apenas palpável se nos sentarmos numa cadeira a perseguir os ponteiros com os olhos. A vida é muitas vezes essa cadeira, em que nos sentamos com o tempo a passar-nos à frente e nós imobilizados a vê-lo passar. É uma brisa fresca numa noite de verão que recordamos quando já chegou o inverno.
Penso na quantidade de vezes que me sinto nostálgica a viver alguma coisa, no quão difícil é levantar-me dessa cadeira e viver aquela memória sem pensar em como tudo acaba. Andamos sempre desencontrados, impedidos de viver algo sem pensar no seu fim e, mais tarde, sentados novamente num café qualquer a revisitar passados.
Este verão pautou-se com a ausência da minha vizinha de baixo. Voltou com o outono, deixando oficialmente o verão para trás. A quantidade de vezes que saí de casa para o trabalho e não a vi à porta do prédio a fumar dizem-me que se passaram meses. A minha vizinha deve ter continuado a fumar à porta de algum prédio, mas não do meu. Reparei que o cabelo lhe cresceu nestes meses que esteve fora. Contou-me no primeiro dia que nos conhecemos que tem cancro. Riu-se da ironia de dizer isto com um cigarro na mão e eu ri-me de volta. O cabelo mais comprido é mais uma prova de que o tempo passou. Fiquei feliz de saber que ia voltar a ver a sua silhueta ao dobrar a esquina – uma referência de que as coisas não mudaram assim tanto.
A mesma vizinha que tem cancro e fuma, disse-me nessa primeira conversa que gosta do vento. É raro conhecer pessoas que gostem do vento. Desarruma-nos o caminho por onde passamos, as folhas nas árvores, o cabelo que arranjámos de manhã. “Aqui tem de se gostar do vento e da chuva”. Tem de ser aparentemente. Nem o vento ou o cancro a impedem de ficar à porta do prédio num compasso lento a levar o próximo cigarro à boca. Na sua honestidade tosca confessou ainda que a irrita quando está bom tempo na rua e o sol lhe invade a casa quando tenta ver um filme. Que as partículas do pó ali a dançar pela casa a desconcentram. Andamos todos a procurar apartamentos bem posicionados para termos o sol a visitar-nos e a minha vizinha só quer ver um filme em paz sem pensar em aspirar.